Centro do Rio ganha novos contornos

Cenário de episódios históricos, a Praça XV viu a cidade nascer e crescer. Foi ali que a família real portuguesa desembarcou fugida de Napoleão Bonaparte, em 1808, e fez sua primeira morada. Da sacada do Paço Imperial, dom Pedro I afirmou não ceder às pressões lusitanas e deu origem ao Dia do Fico. No início do século XX, a paisagem dos arredores sofreu uma verdadeira transformação com o desmonte do Morro do Castelo, remanescente do núcleo urbano que deu origem à cidade. No domingo (29), um novo capítulo se escreve e o carioca tem um reencontro marcado com o seu passado. O trecho, entre o Museu Histórico Nacional e o prédio da antiga Bolsa de Valores, será entregue à população totalmente redesenhado. Parte do projeto da Orla Luiz Paulo Conde, a área de cerca de 78.000 metros quadrados ganhou novo calçamento, paisagismo e mobiliário urbano.

Esse é só um ponto da intervenção que se alonga por 3,5 quilômetros, à beira da Baía de Guanabara. A maior mudança será visível nas imediações do restaurante Ancoramar, antigo Albamar, onde antes havia um estacionamento e um terminal de ônibus. A paisagem degradada deu lugar a uma nova área de lazer. A inauguração marca a reta final do ambicioso plano de reurbanização do Centro e da Zona Portuária, parte dos preparativos para os Jogos Olímpicos. “Nem eu acreditava que ia conseguir terminar tudo. A gente apresentava os projetos, mas no fundo achava que a execução era coisa para quinze anos”, diz o prefeito Eduardo Paes. “Eu chegava a imaginar outro cara inaugurando minhas obras e pensava se ia ser lembrado”, brinca.

À medida que a cidade começa a se livrar dos tapumes e novos cartões-postais surgem, a principal sensação dos cariocas é de alívio. Não resta dúvida de que a população sofreu na pele e pagou um preço alto até que essas melhorias passassem a ser entregues. O marco de todo o projeto de revitalização da região central foi o desmonte do Elevado da Perimetral, construído a partir de 1950 e demolido num longo processo iniciado em novembro de 2013. A intervenção reverberou não só no trânsito de diversos bairros, mas também no de várias cidades da Região Metropolitana. Foram muitas em as vezes que prefeitos vizinhos protestaram, pelo telefone, com Paes contra os efeitos das obras. Não bastasse decretar o fim do viaduto que ligava o Caju e a Ponte Rio-Niterói ao Aterro do Flamengo, o megaprojeto promoveu um verdadeiro caos no tráfego ao mexer com o trajeto de 180 linhas de ônibus e rasgar o asfalto do Centro para implantar a rede do modernoso veículo leve sobre trilhos (VLT). Isso sem contar a construção do Museu do Amanhã, projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, inaugurado em dezembro, e o Museu de Arte do Rio, aberto dois anos antes.

O conjunto de projetos, que engloba uma área de 5 milhões de metros quadrados, inclui a reurbanização de 70 quilômetros de vias, a recuperação de 700 quilômetros de redes de infraestrutura urbana, a implantação de 17 quilômetros de ciclovia e a construção de três túneis subterrâneos que somam 7,5 quilômetros. O plano começou a ser traçado em 2009, logo após a escolha do Rio como sede da Olimpíada 2016, e está orçado em 8 bilhões de reais, incluindo os primeiros anos de manutenção. “A revitalização do Centro é uma condição essencial para o futuro da Região Metropolitana do Rio, mas só vamos saber se o resultado do sacrifício valeu a pena nos próximos anos”, comenta Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB).

Do projeto original, que prometia novos contornos para o Centro ao longo de quinze anos, muito já saiu do papel. Mas, não se pode ignorar, vários prazos foram estourados. Na corrida contra o tempo, as obras seguem turnos alternados 24 horas por dia e já tiveram 9.000 trabalhadores, 2.500 deles só na instalação do VLT. O próprio trenzinho tinha o início da operação com passageiros previsto para o início deste ano, mas só deve começar a rodar no próximo dia 5. O carioca que já havia se desacostumado aos bondes desde o fim dos anos 60 terá de redobrar sua atenção ao caminhar pelas principais vias da região, já que o veículo é silencioso. Ao custo de 1,1 bilhão de reais, o novo sistema vai ligar a Rodoviária Novo Rio ao Aeroporto Santos Dumont com composições capazes de transportar 420 passageiros cada uma. Quando todo o traçado estiver em pleno funcionamento, serão 28 quilômetros de trilhos, três estações e 28 paradas (eram previstas inicialmente 42), com capacidade para transportar até 300.000 passageiros por dia. Uma das grandes preocupações é como fazer o carioca preservar o novo transporte e respeitar o sistema de cobrança voluntária, sem cobrador. “Apostamos em uma mudança cultural. Já estava mais do que na hora de chegar à civilização”, diz o prefeito.

Remodelar o Centro não constava no pacote olímpico inicial. Embora a maioria das arenas esportivas esteja na Zona Oeste, o Porto Maravilha transformou-se na vitrine da cidade. Embalada pelos preparativos da Rio 2016, a administração municipal chegou a propor ao Comitê Olímpico Internacional (COI) a transferência do Parque Olímpico para as margens da Baía de Guanabara. O plano, ambicioso e quase delirante, não foi para a frente, mas deu um empurrão na reurbanização da região. Apesar de distante dos estádios, o Centro receberá o principal símbolo dos Jogos, a pira olímpica, que ficará acesa em frente à Igreja da Candelária, nos últimos metros da Orla Conde que serão entregues à população, em julho. O motivo da demora na conclusão desse trecho causou a maior apreensão nas autoridades até agora. Foi exatamente ali que um incidente na escavação do Túnel da Via Expressa (agora batizado de Marcello Alencar), o substituto subterrâneo da Perimetral, obrigou os engenheiros a rever todo seu cronograma de execução. Quando perfuravam os 5 metros finais de um total de 6 quilômetros divididos em duas galerias, a obra precisou se interrompida por causa de uma perigosa infiltração de água. Sanado o problema, o ritmo foi acelerado e a expectativa é que a obra seja concluída até o fim de junho. “Todas essas intervenções compõem um sistema urbanístico novo que vai atrair mais pessoas e, quem sabe, despertar o interesse em morar no Centro”, opina o arquiteto Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade.

A entrega da cidade revitalizada acontece num momento, no mínimo, delicado. Enquanto a região vê surgir áreas e equipamentos estalando de novos, o ambiente social está degradado. Além do visível aumento da mendicância, os índices de criminalidade dispararam por lá. Mesmo em locais ocupados pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), como a favela da Providência, o tráfico voltou a mostrar seu poder de fogo em confrontos com policiais e na intimidação dos novos ocupantes das áreas reurbanizadas. No Centro, só nos primeiros quatro meses deste ano, foram registrados 2.652 roubos – um aumento de 25% em comparação com o mesmo período de 2015. Em meio à crise econômica que assola o país e atinge em especial o governo do estado, planos paralelos de segurança que unem a iniciativa privada e esferas públicas surgem como paliativo. Seguindo o modelo dos projetos existentes no Aterro, Lagoa e Méier, a Fecomércio, em parceria com a prefeitura, prepara-se para lançar o Centro Presente. Com investimento previsto de 45 milhões de reais ao longo de um ano, a ação contará com patrulhamento das 6h30 às 22h30, feito por 484 homens, entre policiais militares e agentes civis.

Outra consequência da retração econômica foi a drástica redução no ritmo dos investimentos privados nos empreendimentos que ocupariam a Região Portuária. Entre as construções que ficaram no meio do caminho, duas chamam atenção. O Porto Vida Residencial, com 1.333 apartamentos, anunciado como o primeiro grande complexo habitacional da região, tornou-se um esqueleto abandonado, visível da Avenida Francisco Bicalho. Outra estrutura incompleta, pegada à Cidade do Samba, é a que abrigaria a nova sede do Banco Central. O hotel Holiday Inn Porto Maravilha, de 32 pavimentos, chegou a ser lançado pela Odebrecht, mas não saiu do papel. Já o faraônico complexo com seis torres de até cinquenta andares, o Trump Towers, do bilionário candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, não passou de uma promessa.

Sucessão de dificuldades não reduz a importância das transformações das mudanças ocorridas na região. Foram raros os momentos em que uma área da cidade sofreu intervenções como as que estão sendo vistas agora. A mais emblemática, sem dúvida, foi a brutal reforma empreendida pelo prefeito Francisco Pereira Passos, que governou o Rio entre 1902 e 1906, com o objetivo de transformar a cidade de traços coloniais em uma metrópole no padrão da belle époque europeia. Ele derrubou cortiços, ergueu suntuosos prédios seguindo uma arquitetura eclética e abriu a Avenida Central, que cumpria também o papel de um grande passeio público.

Hoje, com o nome de Rio Branco, a via reencontra o seu passado no projeto de Paes. Entre a Cinelândia e o Largo da Carioca, a avenida foi fechada ao trânsito e tornou-se bulevar, cortado por uma ciclovia. Ainda assim, a maior alteração urbanística está mesmo à beira da Baía de Guanabara. Áreas vedadas ao uso público, como o trecho do 1º Distrito Naval, foram reabertas. Como num círculo virtuoso, vários prédios da região, com o impulso da novidade, passaram a recuperar as fachadas, deixando o visual ainda mais imponente. Ao todo, o novo cenário tem como vizinhança 27 museus e centros culturais, como a Casa França-Brasil, um dos marcos arquitetônicos da cidade com seu estilo neoclássico. Graças às obras de urbanização, o prédio de quase 200 anos finalmente voltará a abrir a sua porta principal para o mar.

Fonte: Veja Rio – 01/06/2016