Berço da cidade e lugar de onde ela começou a se expandir, o Centro e seu casarão histórico completam 30 anos de preservação com planos de futuro. Primeira Área de Proteção do Ambiente Cultural (Apac) da cidade, o Corredor Cultural – regulamentado por lei em 1984 – inovou ao preservar um conjunto arquitetônico de 1.600 imóveis (que não podem ser modificados) e colocar sob tutela (ou seja, qualquer mudança precisa ter autorização prévia) 1.400 nos arredores da Lapa e das praças Quinze, da República e Tiradentes. Três décadas depois, o desafio agora é levar vitalidade a essa área de 1,3 milhão de metros quadrados, onde o fervilhar dos dias úteis contrasta com o esvaziamento dos fins de semana.

A prefeitura estuda fazer modificações na legislação para viabilizar a construção de imóveis residenciais em 12 terrenos vazios da região. Eles serviriam como indutores do uso misto da área, hoje fortemente ocupada pelo comércio e pelo setor de serviços. O prefeito Eduardo Paes não descarta ainda a adoção no Centro dos mesmos incentivos fiscais criados para a conversão de imóveis antigos em moradias na Apac de Saúde, Gamboa e Santo Cristo (Sagas). A lei dá isenção de IPTU, ISS e ITBI a projetos residenciais nesses bairros e no Porto. Hoje, os imóveis conservados do Corredor Cultural já têm isenção de IPTU.

– Estamos fazendo uma experiência, um laboratório em Sagas. Com uma expectativa muito boa de resultado. Se der certo, podemos, sim, replicar no Corredor Cultural – diz Paes.

O casario, que sente o peso dos anos, é alvo de outra iniciativa de revitalização: o investimento na restauração. Este mês, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade lança mais um edital do Programa de Apoio à Conservação do Patrimônio Cultural (Pro-Apac), destinando R$ 4,4 milhões a projetos no Centro e nas Apacs próximas, de Santa Teresa e Sagas. O presidente do instituto, Washington Fajardo, aposta no avanço do Pro-Apac como linha de crédito permanente. No Centro, ele ajudaria a contornar problemas de conservação e eliminar uma lógica perversa: o espaço acima das lojas costuma ser usado como depósito, ficando relegado ao esquecimento.

As alterações na legislação urbanística não mexeriam nos imóveis preservados. Mas permitiriam a flexibilização de gabarito das áreas vazias, que estão sendo analisadas por técnicos do instituto e das secretarias de Urbanismo e Habitação. O estudo pode virar projeto de lei.

– O grande desafio atual da Apac é convencer os proprietários de que os prédios devem ser restaurados e podem, sim, ter ocupação mista, com o comércio convivendo com moradias. A ideia é incentivar mais pessoas a morarem no Centro – acrescenta Fajardo.

CORREDOR CULTURAL EXIGIU 4 ANOS DE DEBATES

O estudo de ocupação dos terrenos vazios surge 20 anos depois da lei 2.236, que voltou a permitir residências no Centro. Antes disso, o uso era restrito a comércio e serviços. Segundo a secretária municipal de Urbanismo, Maria Madalena Sain’t Martin, a retomada dos licenciamentos demorou quase uma década para ocorrer. Desde 2005, foram licenciadas 2.913 unidades habitacionais no Corredor Cultural. Mas os núcleos residenciais estão mais concentrados às suas margens, como em parte da Lapa:

– Durante muitos anos, não era permitido morar no segundo andar de um sobrado da Saara, por exemplo. A lei de 94 reverteu esse quadro. Hoje, a mistura de usos comercial e residencial é permitida. E é o que torna um bairro vivo.

Primeira iniciativa de preservação de conjuntos arquitetônicos – até então, a tônica no Rio era proteger prédios isoladamente, por sua arquitetura notável ou seu valor histórico -, o Corredor Cultural exigiu quatro anos de discussões. Um conselho de notáveis, entre eles os escritores Rubem Fonseca e Nélida Piñon, ajudou a formatar a lei. A criação da primeira Apac é contemporânea da fundação dos órgãos de patrimônio do município, num momento fértil de debate sobre preservação da memória e de manifestações da sociedade civil.

Funcionária da prefeitura há 35 anos, Maria Madalena conta que o Corredor Cultural foi o ápice dessa discussão por preservação. Ele cancelou oito projetos que previam a abertura de novas avenidas e a construção de prédios no Centro. Outros 25 planos, alguns ainda da época do Distrito Federal, foram modificados. Se tivessem sido executados, provocariam uma mudança drástica no Centro.

Um deles previa a abertura de uma avenida de 70 metros de largura, batizada de Norte-Sul, ligando o Aterro do Flamengo à Zona Portuária e rasgando as imediações da Praça Tiradentes. Ela colocaria abaixo joias da arquitetura como o Real Gabinete Português de Leitura e o prédio da UFRJ do Largo de São Francisco, além do Colégio Pedro II na Avenida Marechal Floriano. Outros dois projetos previam a abertura de ruas amplas e a construção de prédios de dez a 30 andares na Saara. Os edifícios mais altos nessa região, diz a secretária, são remanescentes desses anos que antecederam a Apac:

– Eram grandes projetos viários que demoliam quarteirões inteiros. Isso fomentou uma discussão popular muito grande – diz Maria Madalena.

DEMOLIÇÃO DO MONROE CAUSOU PROTESTOS

Ex-subprefeito do Centro, coordenador do grupo de trabalho do Corredor Cultural, o arquiteto Augusto Ivan lembra que o contexto da luta por preservação contaminou positivamente técnicos da prefeitura, que começaram a discutir instrumentos para proteger a memória do Rio. A demolição do Palácio Monroe, em 1978, diz ele, serviu como catalisador, ao suscitar um sentimento de insatisfação.

– Até então, os tombamentos protegiam palácios, conventos, igrejas e teatros. O casario do Centro não era de uma arquitetura ímpar, mas tinha valor como conjunto. A legislação era muito permissiva. O prédio da Candido Mendes de 40 andares, ao lado da Igreja do Carmo, seria impensável hoje.

 

Fonte: O Globo, Isabela Bastos – 03/08/2014