Os oráculos do crédito imobiliário previam para 2014 um verdadeiro desastre. Com a modalidade crescendo a passos largos nos anos anteriores, não haveria poupança suficiente para dar conta de tanto financiamento para a compra da casa própria.

Pois bem, 2014 está aqui e o apocalipse do empréstimo habitacional longe de chegar. A surpresa veio da boa e velha caderneta, que ganhou uma sobrevida nos últimos anos e vem batendo recordes de captação. Tanto que, mesmo com o crédito imobiliário crescendo a mais de 30% ao ano, há bancos com dificuldades para dar um destino aos recursos que chegaram de tantos poupadores. A poupança encerrou janeiro com um saldo de R$ 603 bilhões, 20% acima do mesmo período de 2013 – ano em que bateu recorde de captação líquida. Na outra ponta, o financiamento imobiliário registrou um crescimento de 32% no estoque em 2013, para R$ 395,2 bilhões, mais que o dobro do que avançou a média do sistema de crédito (14,6%).

Entre os bancos privados, é para Itaú Unibanco e Bradesco que a enxurrada de poupança deixou mais difícil a tarefa de cumprir o percentual mínimo de 65% da caderneta que precisa ser direcionada para o crédito imobiliário. A quitação antecipada desses contratos também contribui para aumentar o desafio.

Já o Santander vem justamente se esforçando para conseguir uma fatia maior da poupança e impedir que a falta de recursos comprometa seus esforços na linha de crédito em que mais cresceu no ano passado. Entre os bancos públicos, a Caixa Econômica Federal diz ter um colchão de R$ 2 bilhões em recursos de poupança para evitar que falte dinheiro para emprestar. “Preencher a exigibilidade da poupança não está fácil.

Mas esse é quase um tipo de problema que é bom ter”, afirma o diretor de crédito do Bradesco, Cláudio Borges. “Nós estamos cumprindo os 65%, mas ficou mais desafiador.” No banco da Cidade de Deus o saldo de poupança encerrou o ano em R$ 80,71 bilhões, crescimento de 16,9% na comparação anual.

“Os clientes estão amortizando cada vez mais rápido o empréstimo. Isso é um bom sinal para qualidade da carteira, mas dificulta o cumprimento da exigibilidade”, diz.

Como a amortização antecipada sinaliza melhora da renda do tomador, a prática é vista como indício de que o banco acertou na concessão. O saldo de crédito imobiliário no Bradesco fechou 2013 em R$ 27,9 bilhões, com avanço de 44,8% em 12 meses. A regra do Banco Central (BC) obriga os bancos a direcionar pelo menos 65% do estoque de recursos que têm em poupança para crédito imobiliário. Dessa quantia direcionada, um mínimo de 80% precisa financiar imóveis que custem até R$ 500 mil (ou R$ 750 mil para algumas capitais e regiões metropolitanas), o chamado Sistema de Financiamento à Habitação (SFH).

Essa é a parcela mais difícil de ser cumprida. O resto pode ser aplicado em imóveis acima desse valor. “A poupança é diferente dos demais produtos de captação bancária porque os mecanismos de controle de captação são menores. Não temos flexibilidade de taxa e fica difícil controlar o volume captado”, afirma um banqueiro, que preferiu não ser identificado.

“Ao mesmo tempo, precisamos de empréstimos de boa qualidade de risco para preencher a exigibilidade, então não adianta sair emprestando”, diz. Segundo executivos que acompanham o segmento, o Itaú também viu a captação recorde da poupança dificultar o atendimento da exigibilidade. No banco, o estoque de crédito imobiliário fechou 2013 em R$ 34,15 bilhões, avanço de 32,17% no acumulado de 12 meses. Já o saldo de poupança avançou 27,22% e fechou em R$ 106,17 bilhões.

Procurado, o Itaú não concedeu entrevista. Importante lembrar que os bancos contabilizam uma espécie de saldo “ampliado” das operações de crédito imobiliário quando fazem as contas de exigibilidade, que inclui todo o volume contratado, mas que não necessariamente foi liberado. Na construção de imóveis, por exemplo, os recursos só são liberados conforme a obra é entregue.

É por isso que os bancos conseguem ficar enquadrados, mesmo que a razão entre o saldo de empréstimos que aparece no balanço e os depósitos de poupança não resulte em 65%. Aliás, fica bem abaixo disso nos dois maiores bancos privados do país.

Além de crédito, outros instrumentos financeiros podem ser usados para compor os 65% obrigatórios de aplicação de recursos da poupança. Caso de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) ou Letras de Crédito Imobiliário (LCI).

O Santander sofre do mal oposto: teve que incentivar a captação de poupança na rede de agências para não correr risco de ficar sem dinheiro para financiar o sonho da casa própria. “Hoje estamos equilibrados, mas houve um momento em que sentimos que poderiam faltar recursos de poupança”, afirma Gilberto Abreu, diretor de negócios imobiliários do banco.

Sem coincidência, o banco lançou a campanha publicitária “Poupar é Pop”, em setembro, com direito a Sérgio Lorosa e Ultraje a Rigor cantando para atrair poupadores. Curioso é que, no fim de 2011, o Santander transferiu parte dos recursos da caderneta para CDBs, nas aplicações automáticas da conta corrente. O crédito habitacional é de longe a linha que mais cresceu no banco espanhol no ano passado, com avanço de 32,9%, a R$ 11,8 bilhões. No mesmo período, o estoque de poupança subiu 25,1% para R$ 32,6 bilhões.

Para Abreu, contudo, a diferença entre a taxa básica de juros e a remuneração da poupança, em um período que promete continuidade de aperto monetário, pode levar a uma migração de clientes da caderneta para aplicações mais rentáveis. A Caixa Econômica Federal, banco líder em crédito imobiliário, tem um colchão de R$ 2 bilhões em recursos da poupança para impedir que falte dinheiro da caderneta para financiar sua principal linha de atuação, segundo o diretor executivo de habitação, Teotonio Rezende.

“Estamos sem dificuldades para cumprir o direcionamento de poupança”, afirma Ainda assim, o banco público tem feito simulações para calcular se, caso falte poupança para emprestar, seria possível manter seu nível atual de taxa contando com outras fontes de financiamento, como as Letras de Crédito Imobiliário (LCI). “Nossa taxa de juros permite, sim, uma combinação entre ‘funding’ de poupança e de LCI, se for necessário”, diz Rezende.

Se em alguns bancos chega até a “sobrar” poupança, não é por falta de apetite para emprestar. Até porque as instituições têm, em geral, mantido a taxa de juros na modalidade em níveis historicamente baixos. Dados de janeiro do Banco Central mostram que a média das taxas de juros das 11 instituições que atuam com financiamento de imóveis no SFH fica em 8,36% ao ano. O teto para esta taxa, fixado pelo governo, é de 12%. Um ano antes, a taxa média estavam em 8,59%.

 

 Fonte: Valor Econômico – 18/02/2014