Uma casa completamente equipada com todos os gadgets tecnológicos existentes ou totalmente desplugada? Na cidade? No campo? Ou na praia? Grande o bastante para caber toda a família estendida de hoje ou no tamanho suficiente para satisfazer à solteirice de homens e mulheres que se casam cada vez mais tarde? O que é morar bem para você? Certamente, cada um vai ter a sua própria resposta, de acordo com o que lhe é mais caro: no aspecto afetivo, a família – tenha ela o arranjo que for; no prático, a localização, o clima, a divisão espacial do imóvel.

E num mundo cada vez mais digital, já surge uma nova forma de morar, em que a casa passa a ser secundária: as redes sociais, como defende o arquiteto Marcelo Tramontano, coordenador do Núcleo de Estudos de Habitares Interativos da USP (Nomads):

– Hoje, elas são um dos espaços do morar. Você pode estar viajando, num hotel a quilômetros de distância de sua casa, mas abre o computador e está novamente em casa, entre os seus. É um habitar expandido que se efetiva num ambiente digital.

Ainda no século XIX

 Sem dúvida, poucas coisas mudaram tanto nos últimos tempos como os relacionamentos. As famílias deixaram de ser nucleares e comportam os mais diferentes arranjos. De um lado, aumenta o número de pessoas vivendo sozinhas, em diferentes fases da vida: solteiros, descasados, idosos viúvos. Do outro, crescem os braços das famílias estendidas, aquelas que comportam filhos de vários casamentos na mesma moradia.

– A família nuclear representa hoje menos de 50% das famílias brasileiras. Mas os imóveis ainda são desenhados com a mesma hierarquia do século XIX: começam com uma área social comum, têm a cozinha e as dependências ao fundo, a área íntima. Isso se encontra até nas casas mais simples. É sempre preciso adequar a casa à necessidade da família, quebrar tudo e construir de novo – avalia o coordenador do Nomads.

Minha cidade, minha casa

 Por questões financeiras, cresce também a cohabitação: filhos que passam mais tempo com os pais; avós que voltam a viver com filhos e netos.

– A casa deve permitir a autonomia de cada um de seus moradores. Para isso, é preciso que tenha um tamanho conveniente. Em Paris, os imóveis são quase sempre muito pequenos. Mas, lá, isso vem sendo resolvido com o uso de apartamentos que têm pequenos estúdios que podem servir à babá, à avó, ao adolescente em fase de crescimento – diz a socióloga francesa Monique Eleb, que esteve recentemente no Brasil para participar de seminários sobre o habitar nas grandes metrópoles.

E não dá para falar da vida nas grandes cidades sem considerar questões como serviços, mobilidade, como enfatiza a antropóloga Laura Graziela Gomes, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Modernidade da Universidade Federal Fluminense (UFF):

– Se nós imaginamos que a maior parte dos adultos tem uma vida ativa profissional, a acessibilidade ao local de trabalho e de serviços, deve ser encarada como um fator fundamental.

‘Moramos muito mal’

 De fato, num país em que a população urbana chega aos 85%, como o Brasil, não se pode desassociar o bem viver das condições oferecidas pelas cidades. A opinião é do arquiteto Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB):

– O morar não se esgota no que a casa pode oferecer. É urbano. E não dá para pensar em morar bem sem dispor dos serviços característicos das cidades contemporâneas. Em Paris ou Nova York, onde há alta oferta de bons serviços públicos, é aceitável morar em imóveis de áreas reduzidas. E nesse aspecto, no Brasil, moramos muito mal. Em todas as nossas grandes cidades. Saneamento, mobilidade, eletricidade… nada é adequado.

Em cidades hostis, a volta para o “ninho”

 Tempo em casa passa a ser valorizado enquanto o trânsito vira o grande vilão urbano

Desses aspectos, não resta dúvida, a (falta de) mobilidade é o que mais compromete a qualidade de vida em grandes cidades brasileiras, em especial Rio e São Paulo, onde o trajeto casa-trabalho-casa se torna cada vez mais longo, não necessariamente em espaço, mas, certamente, em tempo.

– O trânsito virou o grande vilão da vida urbana – defende a antropóloga Laura Graziela Gomes, do Núcleo de Estudos sobre Modernidade da UFF. – Qualquer lugar em que eu precise sair de casa com muita antecedência por causa do trânsito, ou dependa totalmente de carro, já não considero um bom lugar para morar, mesmo que seja aprazível em termos de paisagem natural. As pessoas precisam ter mais qualidade de vida 24 horas por dia e não apenas nos fins de semana. Um fim de semana não resolve uma semana inteira de estresse no trânsito.

O preço do bom serviço

 Fatores assim acabam se refletindo também nos preços praticados no mercado imobiliário. E a Zona Sul carioca é, talvez, um dos maiores exemplos.

– As pessoas acham que os bairros da Zona Sul são caros só por causa da praia. Mas não é isso. Histórica e politicamente, aquela é uma área que sempre recebeu mais atenção do poder público e, por isso, tem os melhores serviços. Se a Zona Norte não estivesse abandonada, como efetivamente está, há 40, 50 anos, e se a infraestrutura existente funcionasse como deveria, haveria um equilíbrio maior até dos preços dos imóveis – avalia Sérgio Magalhães, do IAB.

E, se o ambiente urbano se torna duro, ou hostil, o resultado prático é que as pessoas voltam a ocupar cada vez mais as suas casas, quase como se voltassem ao ninho, o lugar seguro, onde podem relaxar, receber os amigos, se divertir. Ter uma cozinha aberta, onde se pode receber os amigos, conversar e cozinhar, ao mesmo tempo, por exemplo, se torna um grande prazer, ressalta Marcelo Tramontano, do Nomads, para quem, o tempo em casa é mais valorizado, mesmo que a vida diária não permita que seja muito longo:

– Identificamos isso em pesquisa que fizemos ano passado. Quando a cidade começou a se tornar tão dura, a casa voltou a ser vista como paraíso, o oásis em meio ao caos. Sempre em oposição à cidade.

Fonte: Jornal O Globo – 29/12/2013