RIO – Os terrenos de marinha existem desde que o Brasil era vice-reino de Portugal e foram instituídos em 1818 para garantir a defesa nacional, em caso de um possível ataque inimigo e para assegurar o acesso livre da população ao mar. Mas logo a Coroa descobriu que poderia também lucrar com eles e, em 1831, a lei orçamentária previu pela primeira vez a sua exploração por terceiros, mediante o recolhimento de taxas. A essa operação era dado o nome de aforamento ou enfiteuse, sistema trazido para o Brasil ainda nos primórdios da colonização, com a criação das capitanias hereditárias. O ataque naval ao Rio não aconteceu, mas, quase dois séculos depois, os terrenos de marinha se tornaram alvo de outra batalha: a dos proprietários de imóveis contra a União. O confronto agora é na Justiça.

Utilizando-se a média de marés altas do ano de 1831, foi traçada uma linha imaginária, e todas as propriedades particulares que estivessem dentro de uma faixa de terra de 33 metros (alcance de uma bala de canhão) a partir do mar ou dos rios navegáveis teriam que pagar foro à Coroa (taxa anual), além de um percentual no caso de venda (o laudêmio). Mas, mudanças na legislação e nas marés, ocupação irregular e construção de aterros legais e ilegais ao longo das praias e lagoas puseram de ponta-cabeça a localização dos terrenos de marinha. Nos últimos anos, milhares de proprietários foram surpreendidos com a dívida de foros atrasados e laudêmios de imóveis que sequer estão próximos do mar. A cobrança veio a partir de uma revisão cartográfica realizada entre 1996 e 2000, com base num decreto-lei de 1946, que incluiu na demarcação as propriedades no entorno de lagoas como as de Barra, Jacarepaguá e Niterói.

Para a União, trata-se de um negócio que, desde o tempo da Coroa, é lucrativo. Só em 2013, o governo federal arrecadou no Estado do Rio mais de R$ 28 milhões com foros e R$ 125 milhões com laudêmios.

Entre os imóveis incluídos na cobrança mais recentemente, estão os do Jardim Oceânico, do Tijucamar e do condomínio Península.

– Com essa revisão, os terrenos no entorno das lagoas da Barra, do Joá até o Camorim, foram incluídos no patrimônio da União. O prejuízo é enorme. Nenhum proprietário foi avisado para que pudesse impugnar a revisão feita pela União. Muitos foram cobrados por dívidas que não tinham, e milhares tiveram que pagar o laudêmio de 5% do valor do imóvel para a União, a fim de conseguir a escritura de seus imóveis. Ou seja, estamos na Justiça em guerra contra essas enfiteuses – disse o presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Tijucamar e do Jardim Oceânico (Amor), Luiz Igrejas.

Advogado do caso, José Nicodemos, que ganhou uma causa igual para o vizinho de porta, se tornou ele mesmo vítima do laudêmio: teve de desembolsar quase R$ 30 mil para fechar a compra de seu novo escritório no Península (a cerca de dois quilômetros do mar):

– O curioso é que quem mora à beira-mar, na Avenida Sernambetiba, não paga. Já eu, que estou a quilômetros de distância do mar, tive que pagar para não perder o negócio. Mas vou recorrer.

Para ganhar a ação do vizinho contra o governo federal, ele alegou que a demarcação desrespeitou o decreto 9.760/46, que previa que, para a realização do trabalho, a Superintendência de Patrimônio da União (SPU) teria de convidar pessoalmente os interessados – o que não ocorreu. Nicodemos critica ainda o próprio decreto:

– Só para se ter uma ideia da aberração, logo no primeiro artigo, está previsto que estão incluídos entre os imóveis da União “as ilhas situadas em mares territoriais ou não”. O que isso quer dizer? Podemos cobrar por qualquer ilha no mundo?

Os moradores do condomínio Residencial Camboatá, em Niterói, também sofreram com a “nova onda” da União. Situado no morro e a cerca de três quilômetros da Praia de Camboinhas, o empreendimento de 1992 passou a se localizar em “terreno de marinha” na mesma reforma cartográfica. A notícia atingiu os cerca de cem proprietários como uma tsunami.

– Eu só descobri que tinha virado terreno de marinha em 2008. Entrei com processo na Justiça e ganhei. Mas os moradores que precisaram vender seus imóveis durante esse período tiveram que recolher os 5% do valor do negócio à União, senão o cartório não fechava a escritura. O governo, quando quer tirar dinheiro, tira – reclamou o aposentado Reli Joelson.

Com base também na falta de comunicação prévia sobre a demarcação, o condomínio conseguiu anular na Justiça, em primeira instância, o ato administrativo que transformou o terreno do empreendimento em patrimônio da União. Na sentença, o juiz Rogério Tobias de Carvalho afirmou que “centenas de ações individuais começaram a ser distribuídas às diversas varas federais (…) questionando o processo demarcatório e atacando a averbação nos cartórios de registro de imóveis, ato que implica não só a perda da propriedade plena dos imóveis, mas a cobrança retroativa de taxas”.

Um outro argumento do processo do Camboatá abriu caminho para a suspensão da cobrança em todo o entorno das lagoas de Piratininga e Itaipu.

– Na época em que o mapa de 1831 foi feito, não havia a influência das marés nas lagoas de Piratininga e Itaipu, porque elas não tinham ligação com o mar. Os canais que permitiram a entrada do mar foram construídos depois – explicou o advogado da causa, Leonardo Honorato.

A sentença do caso determinou que “a demarcação da LPM/1831, na orla de Niterói, não pode incluir terrenos marginais das lagoas de Piratininga e de Itaipu, sob o fundamento de que estas, no passado, foram ligadas entre si (Canal de Camboatá) e de forma permanente e direta ao mar”. O próprio Honorato foi atingido pela demarcação:

– Quando fui comprar o imóvel do pai, numa permuta de família, descobri que o apartamento tinha se tornado terreno de marinha. Para não perder o negócio, fui obrigado a pagar R$ 20 mil à União.

Em nota, a SPU informou que o processo demarcatório ainda não foi concluído e que “o Judiciário não está contestando o domínio da área, que é da União”. O órgão negou ainda que haja determinação para anulação do estudo ou reestudo das demarcações. Segundo o texto, “o que a Justiça determinou é a necessidade de notificar individualmente cada imóvel localizado em área de marinha, o que a SPU tem cumprido”. Ainda de acordo com o órgão, no Estado do Rio são 97.685 imóveis pertencentes à União, sendo que aproximadamente 70% estão localizados em terrenos de marinha.

Historiador e especialista em terrenos de marinha, o procurador da República Luís Cláudio Pereira Leivas afirmou que mapas históricos arquivados na Marinha e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro provam que havia ligação entre o mar e as lagoas da Barra e de Niterói. Para ele, a discussão está no valor que a União vem cobrando para a regularização dos terrenos. Leivas defende valores mais baixos:

– O que é importante é que os terrenos de marinha são de fundamental importância para o país, porque garantem que são públicas, ou seja, do povo, as praias, as margens das lagoas e dos rios. Eles permitem o controle ambiental. Não se pode permitir que, por causa dessa grita sobre preços de uma pequena faixa urbana, se sirva aos interesses de quem quer acabar com uma instituição que protege grandes extensões de terra como a Amazônia.

Segundo Leivas, são terrenos de marinha do Rio as orlas que sofreram aterros, como as de Copacabana, Botafogo, Flamengo e Centro, onde as calçadas dos prédios ficaram na linha do mar, segundo o mapa de marés de 1831. Já as praias do Leblon e de Ipanema e a Lagoa Rodrigo de Freitas foram vendidas, ainda pela família real, para a construção de uma fábrica de pólvora e a abertura do Jardim Botânico. Os prédios da orla da Barra estão fora da faixa de 33 metros demarcada em 1831.

PARA ENTENDER AS COBRANÇAS:

Terrenos de Marinha:

A Constituição de 88 definiu os terrenos de marinha como bens da União, como forma de proteger a costa. São mais de oito mil quilômetros de litoral no país, segundo o IBGE. Todos os imóveis nessa faixa protegida devem pagar foro e laudêmio à União.

Foro:

Chamada também de aforamento ou enfiteuse, é uma espécie de arrendamento perpétuo de terras públicas ou particulares. No Rio, além das áreas de marinha, existem enfiteuses cobradas pela prefeitura, pela Igreja Católica e até por famílias, que fixam taxas anuais de, em geral, 0,6% do valor do terreno.

Laudêmio:

É a taxa a ser paga para o foreiro no caso de venda do imóvel. No Rio de Janeiro, os laudêmios variam de 2,5% (no caso de imóveis em terrenos da prefeitura) a 5% (no caso de propriedades em terrenos de marinha) do valor do negócio.

 

Fonte: O Globo, Elenilce Bottari – 28/09/2014