O Rio de Janeiro é uma cidade complexa no que diz respeito à moradia. Das comunidades às mansões, prédios, casas, antigas ou modernas, condomínios verticais e horizontais se espalham pela cidade. E, naturalmente, além das diferenças internas, existem as variadas áreas de entorno, referentes a serviços, mobilidade e lazer. Dentro deste caldeirão de universos, você já se imaginou vivendo em outra casa que não a sua? Ou num bairro diferente do seu? Sim, porque essa é uma tendência do mundo globalizado: experiências de ocupar a casa dos outros, principalmente em viagens de férias e mesmo de negócios, já são comuns, por exemplo, na Europa.

Pois, o Morar Bem imaginou e pôs a ideia em prática, convidando quatro moradores de diferentes áreas da cidade a trocarem de casa por um dia: o troca-troca foi da Barra com Jardim Botânico, e do Grajaú com Ipanema.

O pesquisador Marcelo Tramontano, coordenador do Núcleo de Estudos de Habitares Interativos da USP (nomads.usp), é um dos especialistas que dizem que a troca de casas é um comportamento atual da sociedade:

– É uma prática comum e tendência em vários países, como se observa na plataforma de aluguel temporário, o Airbnb. Para o homem, entretanto, a casa é a segunda pele, um lugar íntimo, contraponto a uma cidade hostil. Assim, no Brasil, as pessoas ainda resistem em abrir sua casa ou em se hospedar no espaço dos outros.

Mas há quem tope experiências novas. A paulistana Zulma Mercadante, que mora na Barra da Tijuca, trocou de casa por um dia com a capixaba Sayonara Sarti, que reside no coração do Jardim Botânico. Para Zulma, que assim que chegou ao apê da Zona Sul foi logo fazendo amizade com Zé, o gato preto que encontrou por lá, a troca não foi complicada, já que, como atriz, está acostumada a habitar lugares diferentes. Sayonara, por sua vez, confessa ter se sentido um pouco perdida no apartamento da Barra e diz que levou algum tempo para se ambientar.

Apesar da inicial estranheza, entretanto, Sayonara dormiu super bem:

– Amei a claridade daqui da Barra da Tijuca. Na Zona Sul, não tem tanta iluminação: como há pouco espaço e um prédio é muito próximo do outro, não entra a luz da manhã. Outra diferença é que, na Barra, há solidão. Uma coisa boa até, você sai do ritmo frenético.

E a proximidade dos imóveis é uma observação que Zulma também fez, pois como na Barra as janelas ficam mais distantes, não se ouve o alarido do vizinho. Já na Zona Sul… surpresas:

– Aqui, os prédios são muito próximos. Ouvi a conversa de um vizinho que está fazendo obras e soube que um outro ia pedir um empréstimo. Por outro lado, aqui há mais opções de comércio nas redondezas do que na Barra.

E estas diferenças dentro de casa fazem parte da rotina de cada uma. Para Zulma – que, além de atriz, é diretora de Marketing da Will Marketing, produtora de eventos ligados à arte -, o silêncio é primordial. Quando não cruza a cidade para ensaiar ou fazer reuniões em um escritório em Ipanema, precisa de tudo quieto para conseguir se concentrar. Já Sayonara, RP da Nova Assessoria, além de morar, trabalha na Zona Sul:

– Na Barra, está parecendo que estou longe de tudo, dá um desespero.

Enquanto isso, em outro canto da cidade, a arquiteta Nadia Al Hayani foi para a casa do namorado, o espanhol Luca Salomone, no Grajaú. E ele saiu do seu restaurante “Tapas Y Besos”, no mesmo bairro onde mora, e foi para o apartamento dela, em Ipanema.

Nadia avalia diferenças estruturais, como o fato de o prédio dela não ter elevador, de as copas das árvores serem mais perto de sua janela, ao contrário da dele, de onde se pode ver, com boa distância, a Reserva Florestal do Grajaú:

– Em Ipanema é mais agitado, escuto pessoas falando no bar embaixo do meu prédio. Aqui é mais silencioso e tranquilo. E também mais fresco.

Luca reconhece que, além da diferença do silêncio e do verde percebido de dentro dos dois apês, existe uma distinção na oferta de serviços nos bairros:

– Ipanema tem melhor infraestrutura, com mais opções de transporte, restaurantes, cinemas e teatros. No Grajaú, não é assim. Porém, é justamente esta falta de ofertas de serviços no bairro que me criou uma oportunidade em montar um restaurante e viver lá.

Para a antropóloga e professora da UFRJ Mirian Goldenberg, experiências como essas evidenciam os aspectos bons e ruins da relação do homem com a moradia e mostram um pouco de nosso desejo: o de reunir tudo de bom num só lugar. Este ideal, diz, já vem despontando há algum tempo, mas tem sido potencializado pelas dificuldades do Rio em relação a preço, mobilidade e respeito entre vizinhos.

– Morar no Rio está muito difícil e como hoje as pessoas ficam mais em casa por opção, vem esta necessidade de transformá-la num lugar gostoso.

Trocar é, também, experimentar outra vida

 – Deixei uma salada e um pudim para Sayonara, vamos ver como ela vai se virar – diz Zulma na noite da troca, enquanto abre a geladeira no apartamento da colega, no Jardim Botânico. – Ih, não tem nada pronto para comer. E está bem vazia… Parece uma piscina: só tem água e luz!… Mas tudo bem, porque na Zona Sul o comércio é perto. Vou ver o que dá para preparar aqui, ou, desço e compro algo.

Na manhã seguinte, Sayonara manda recado:

– Zulma, eu moro sozinha e perto de tudo, então, compro tudo em pouca quantidade. Eu acordo, vou de bicicleta até a praia e na volta passo na padaria e pego algo fresquinho. Mas e cadê a padaria que você disse que tinha aqui perto? Não vejo nada ao redor a não ser prédios.

– É, casa de mãe tem de estar abastecida – reconhece Zulma, que tem um filho de 10 anos que mora com ela, acrescentando que a padaria, em questão, fica dentro do condomínio, mas não é muito perto do apartamento. -Faço tudo de carro na Barra ou peço por telefone.

A psicóloga Marcela Pavan explica que esta situação mostra bem como a casa é um reflexo do seu morador. E que, quando um vai para o espaço do outro, isso fica mais nítido:

– A casa carrega características pessoais de quem mora ali. A personalidade está expressa na decoração, na funcionalidade, na rotina também, como, por exemplo, o que tem na geladeira. A troca de casas lhe permite, de alguma forma, experimentar a vida de outra pessoa. Mas também de abrir a sua para ser explorada, o que ainda tem um certa resistência aqui no Rio, onde se vive uma cultura de desconfiança.

É o que aconteceu também na troca de casas entre Nadia e Luca. Ele mora num conjugado, no Grajaú, que não tem cozinha. Do que, de início, disse não sentir falta, uma vez que faz suas refeições em seu restaurante. Porém, na casa dela, se animou para cozinhar, e foi ao mercado comprar ingredientes para café e almoço:

– Aqui é mais agradável, o espaço é maior e tem a decoração, a mesa, uma cozinha completa. Dá gosto de cozinhar.

Avaliação das suas escolhas

 Esta comparação entre o que você tem na sua casa e o que o outro tem na casa dele é um ponto de destaque para o pesquisador e coordenador do nomads.usp, Marcelo Tramontano. Segundo ele, ao se colocar numa casa já montada, e não num imóvel vazio, a pessoa experimenta uma situação contrária a que está acostumada, o que a leva a refletir sobre o lugar que ela escolheu para morar:

– A decisão de onde viver é muito pautada pela mobilidade urbana e pela facilidade que isso dá às pessoas em seu dia a dia. Trocar de casa faz com que elas reflitam sobre suas escolhas, pois não é uma questão apenas de sair do seu espaço, é, também, uma experiência espacial e cultural.

Tramontano pondera, entretanto, que um dia de troca de residências pode ser pouco para avaliar esta diferença:

– Com mais tempo, é possível comparar melhor. E a pessoa pode se surpreender com o outro universo, ou, reforçar que sua escolha foi a melhor para a sua vida.

Apesar do pouco tempo, os moradores tiraram suas considerações. O empresário espanhol expressa a vontade de ter uma cozinha mais estruturada onde mora e afirma não quer sair do Grajaú, pois, para ele, é boa qualidade de vida morar perto do trabalho. Consideração também de Sayonara.

– Acho que não moraria na Barra da Tijuca. O trânsito é absurdo. O problema não é tanto a distância, mas o fluxo ruim – diz a relações pública, que, após mais de uma hora no trânsito, exclama: – Isso aqui não é vida! Olha o tempo que gastei… Eu já estou até cansada, antes mesmo de começar a fazer minhas atividades.

Zulma concorda que o principal problema seja o caos no trânsito, e não a distância da Barra. Ela diz que, apesar de ir com frequência para a Zona Sul, prefere ficar onde está.

– Embora eu faça muitas coisas lá, aqui, na Barra tem uma estrutura melhor para o meu filho. Por ora, fico aqui.

Mirian Goldenberg, antropóloga e professora da UFRJ, explica que a tendência é de simplificar o dia a dia:

– Tenho observado, de maneira geral, um desejo das pessoas de tornar tudo mais simples. Por exemplo, ter um espaço apenas suficiente dá agilidade à limpeza. Por que ter uma grande cozinha, se hoje se come muito na rua? Por que ter um quarto de empregada, se já não é mais comum alguém que durma na sua casa? São questões que as pessoas têm considerado cada vez mais. A vida mudou e a casa tem de mudar também, ser mais prática.

Fonte: Jornal O Globo – 20/04/2014