Os conturbados dias da Jornada Mundial da Juventude, com o cancelamento da missa do Papa Francisco, representam, talvez, o grande momento histórico de Guaratiba. Há três meses, os bairros da região entraram no mapa imaginário de cariocas e visitantes, que não reparavam na existência de uma área tão grande, verde e distante do centro urbano. Um ano antes, outro fato histórico: luz no fim do túnel, e o tempo gasto no trânsito da Serra da Grota Funda desaparece na via aberta dentro da rocha, por onde carros e ônibus BRT passam a 80 km/h.

Assim, mais perto de tudo e conhecida, Guaratiba e seus bairros adjacentes já apresentam sinais de gentrificação ali e em áreas próximas, como a Freguesia. Entre 2000 e 2010, segundo o Censo do IBGE, subiu em 167% a proporção de moradores com ensino superior na região, quando a variação média do Rio foi de 121%. Ainda é baixa, 3% do total, mas sinaliza que o caminho mudou. O fenômeno é diferente do crescimento desordenado, marca da Zona Oeste.

Bairros vizinhos, como Recreio e Barra, se valorizaram mais rapidamente, e o caminho do Túnel da Grota Funda é cada vez mais um destino de pessoas da velha ou nova classe média atingidas pela maré cheia, e salgada, do mercado imobiliário.

Perda de casas

A francesa Gwenaelle Neveu, de 28 anos é uma das representantes do novo perfil de morador que chega espontaneamente. Ela queria viver no Brasil e conseguiu emprego numa pousada de luxo com spa em Barra de Guaratiba. As diárias vão de R$ 396 a R$ 671.

Formada em Marketing, Comercialização e Gestão em seu país, Gwenaelle, há dois anos no bairro, percebe as mudanças:

– Percebo os preços dos imóveis mais caros. Conheço outros europeus que estão comprando casas por aqui. Acho que isso aconteceu graças ao túnel.Enquanto Guaratiba, o maior bairro, viu o número de casas subir 36% (fruto, em parte, de construções irregulares), Barra e Pedra de Guaratiba, menores, registram queda desse tipo de imóvel (-17% e -3,5% respectivamente).

E os apartamentos dobraram ou mais que dobraram nos três locais em dez anos. Ainda são poucos, mas a vida no sítio ganhou um forte concorrente. Áreas de Pedra de Guaratiba, que ainda abrigam sítios bem ajardinados, recebem visitas de britadeiras, caminhões com material de construção e emissários de empreiteiras com ofertas tentadoras.

É o caso da Estrada do Catruz, com condomínios de centenas de apartamentos em obras e com recursos do Minha Casa Minha Vida, do governo federal.- Moro nesse sítio da Estrada do Catruz há 30 anos e agora apareceram as ofertas. Já recebi quatro.

Mas espero valorizar mais – conta o artista plástico Túlio Corrêa, de 59 anos, que vive num sítio de 4 mil metros quadrados.

Estudos para novo peuA população explodiu: apenas em Guaratiba, chegaram novos 22.917 moradores em dez anos. Já são mais de 110 mil pessoas. Tanto que, depois do fiasco do encharcado Campus Fidei, a prefeitura decidiu, em agosto, congelar por seis meses todas as licenças de obras em análise ou já concedidas para os bairros.

Será feito um estudo urbanístico, com o auxílio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), para a elaboração de um Plano de Estrutura Urbana (PEU).

Foi nesse contexto que o pizzaiolo Francisco Cunha Matias, de 23 anos, chegou ao bairro. Ele mora, desde 2012, num condomínio de seis prédios de cinco andares. O empreendimento chama a atenção na Estrada da Matriz.

Enquanto cavalos ainda passam por lá, o terreno com grama aparada, piscina e portão eletrônico atrai olhares. Matias morava na Rocinha e trabalhava num restaurante do Fashion Mall. Depois decidiu se mudar, com a mulher e um filho, para a Ilha da Gigoia, na Barra. Mas os ares da gentrificação chegaram por lá:

– Pagava R$ 450 por um quarto e sala na Gigoia. Quando saí, a proprietária já queria R$ 850. Assim que abriram o túnel, pensei: a Pedra vai valorizar para caramba, e a parcela do Minha Casa Minha Vida era a mesma do aluguel. Em 15 dias, valorizou R$ 15 mil. Comprei meu apartamento dois quartos por R$ 90 mil – conta Matias.

Ele abriu uma pizzaria n bairro, a Matias Mix, e sabe que apartamentos no prédio em que mora já são vendidos a R$ 120 mil.Por outro lado, o presidente do IAB, Sérgio Magalhães, critica a forma como o Minha Casa Minha Vida induz mudanças entre bairros, como é o caso do pizzaiolo:

– Nessa associação entre governo e empreiteira, a pessoa só pode aderir, não optar. Não vão obrigados, mas induzidos. Não acho isso razoável. As pessoas é que devem ser protagonistas. A vitalidade urbana está sendo conduzida, não estimulada.Consequências ambientais da chegada de tanta gente nova, porém, assustam pescadores da área.

Armando Daltro, de 46 anos, explica:

– Sem vínculo, sem raiz, vão preservar o quê? Quando dão descarga no condomínio novo, o esgoto sai direto aqui e prejudica quem sobrevive do pescado. Estamos perdendo nossa identidade.

 

Fonte: Jornal O Globo, 30/10/2013