No fim de 2015, moradores de Vargem Grande acharam que, enfim, poderiam resolver um problema de longa data. Isso porque a prefeitura sancionara a Lei Complementar 160, que permite a regularização de condomínios e loteamentos informais na região e no Itanhangá. Desde então, porém, pouco mudou. Houve apenas cerca de cem pedidos de legalização com base nessa legislação até o fim do ano passado, data limite para a entrada com a documentação: embora a estimativa é de que haja mais de 500 condomínios irregulares que podem ser beneficiados por ela, acredita-se que muitos têm dificuldades para cumprir todas as exigências previstas. A história agora ganha um outro capítulo: a Comissão de Direito Urbanístico da OAB-Barra contesta alguns pontos do texto e quer propor uma revisão da lei.

O histórico de formação dos dois bairros, que por muito tempo foram compostos de grandes sítios e fazendas. Ao longo do tempo, os terrenos foram fracionados e as novas porções, vendidas ou ocupadas por novos núcleos familiares. Já o desenvolvimento da infraestrutura local não acompanhou o aumento da densidade. O resultado foi o surgimento de diversos condomínios, ou seja, casas reunidas em um mesmo lote, sem o devido registro.

O mais comum na região é encontrar moradores que têm um registro de fração do terreno, mas não o RGI do lote. Atualmente, nem mesmo o registro de fração é concedido, por causa de uma decisão judicial. Com isso, as vendas de imóveis são praticamente informais, o que desvaloriza o patrimônio.

– Atualmente, não é possível transferir a propriedade do terreno. O máximo que as pessoas conseguem, às vezes, é um título de promessa de compra e venda registrado no cartório. Com isso, a Caixa Econômica não pode financiar a compra de um imóvel, por exemplo. O resultado é a desvalorização de casas de boa qualidade. Inclusive, a entrada dessas unidades no mercado seria uma concorrência muito grande para construtoras maiores, fato que sempre afetou o interesse político pelas nossas regularizações – diz Rogério Appelt, membro da comissão de acompanhamento da regularização dos condomínios, ligada à Associação de Moradores das Vargens.

A Lei Complementar 160, de autoria do vereador Chiquinho Brazão (PMDB), flexibiliza algumas exigências para a regularização de condomínios, principalmente em relação a obras de urbanização no entorno, como investimentos em iluminação pública, fornecimento de água e esgoto e asfaltamento. Uma solução criada pela lei é o pagamento de uma contrapartida financeira à prefeitura, cuja fórmula de cálculo foi determinada pela Lei Complementar 165, sancionada no ano passado a fim de prorrogar o prazo inicial para dar entrada no protocolo de regularização.

A lei 160, porém, contém falhas, segundo a Comissão de Direito Urbanístico da OAB-Barra, que acaba de escrever um anteprojeto para a lei, com revisão de alguns pontos. Mas as correções só podem ser feitas pelo Legislativo, e por isso os advogados dependem da ação de um vereador para levar o texto adiante. Vice-presidente da comissão e relator do anteprojeto, Vinicius Custódio diz que o fato mais grave está no artigo que diz que a Câmara dos Vereadores vai publicar, anualmente, uma lista com construções feitas a partir do marco legal – registradas na ortofoto de 2013 – e, portanto, passíveis de legalização. O texto acrescenta que aquelas que não estiverem de acordo com a lei serão desapropriadas pela prefeitura, ou seja, o poder público indenizará os responsáveis por elas.

– Isso é um absurdo. Primeiro, porque não é responsabilidade do Legislativo fiscalizar; isso é atribuição do Executivo. Segundo, porque construção irregular tem que ser notificada e embargada, não desapropriada. Caso contrário, vai haver incentivo aos grileiros, que lotearão um terreno, erguerão uma construção irregular e depois ainda serão indenizados para sair. O que fizemos foi seguir o próprio decreto municipal que regulamenta embargos. Após o embargo, se não houver regularização, o empreendedor será multado e, em último caso, a construção será demolida. Não inventamos nada, só pegamos o que já estava previsto – explica Custódio.

Segundo o advogado, essa previsão de desapropriação não seria uma proteção às comunidades inseridas em Áreas de Especial Interesse Social, porque esse tema deverá ser tratado mais detalhadamente pelo PEU e porque a lei das regularizações só trata de unidades antigas.

Outra mudança importante, segundo a OAB-Barra, é a exclusão das menções a grupamentos de edificações, figura urbanística considerada controversa no meio jurídico.

– No Rio, é comum as pessoas fecharem ruas e colocarem guaritas. Isso seria um loteamento fechado, mas o Plano Diretor de 2011 fez uma confusão e criou a figura do grupamento de edificação, misturando loteamento fechado com condomínio e facilitando esses fechamentos. O principal problema nesses casos é que, em grupamentos, os moradores precisam pagar a uma associação de moradores taxas de iluminação, segurança e tudo aquilo que deveria ser ônus do poder público. Só que a Constituição determina que a associação de moradores não é obrigatória – diz Custódio.

Lei deverá valer para o resto do Rio

Além do aspecto legal, o advogado Vinicius Custódio diz que o incentivo aos chamados grupamentos de edificação não trazem benefícios urbanísticos.

– Aumentando essas licenças você acaba feudalizando a cidade. As pessoas se fecham em blocos, ruas e quadras, o que atrapalha a mobilidade urbana e o uso das praças públicas. Por ser uma figura polêmica e controversa, optamos por não colocá-la no anteprojeto – argumenta.

Nas Vargens, haveria bastante casos de grupamentos, explica Custódio. Como já estão edificados, eles continuariam passíveis de regularização, mas como loteamentos fechados, ou seja, os logradouros internos continuariam sendo públicos, e não como grupamentos.

A OAB-Barra também sugere outras alterações no texto, para adequar conceitos legais, como o de loteamento, à legislação federal, garantindo maior segurança jurídica a proprietários de imóveis e moradores em geral.

Para Rogério Appelt, que não estava ciente das proposições da OAB-Barra, as mudanças na lei não devem ser um impeditivo para a regularização, já que o processo continuaria sendo possível, ainda que sob parâmetros diferentes em certos casos. Nas últimas semanas, a comissão da qual ele faz parte fez contato com Indio da Costa, secretário municipal de Infraestrutura, Urbanismo e Habitação, que prometeu ajudar a acelerar o processo.

Procurado para comentar as alterações propostas pela OAB à lei de sua autoria, o vereador Chiquinho Brazão contemporizou, afirmando, por e-mail, que a “preocupação é louvável”, mas destacou que fazer uma desapropriação não necessariamente significa que vai haver indenização.

Brazão acrescentou que já existe um projeto de lei para permitir a prorrogação do prazo para regularização por mais 380 dias. E que o processo de regularização se tornará bem mais amplo, abrangendo toda a cidade, excetuando-se as Áreas de Planejamento 1 (entre Centro e São Cristóvão) e 2.1 (Botafogo, Lagoa, Copacabana e Rocinha).

Também procurada, a Secretaria de Infraestrutura, Urbanismo e Habitação não respondeu até o fechamento da edição.

Enquanto as pendências burocráticas são resolvidas, quem vive em imóveis irregulares nas Vargens torce por um desfecho positivo. É o caso de Alberto Madeira, morador e presidente da associação do condomínio Residencial Pacuí, onde há 14 casas:

– Nós demos entrada no processo em dezembro. Aqui nem precisamos de obras de infraestrutura; todas as casas são de bom padrão.

Já o caso dos condomínios Residencial Jardim Itaúna e Rancho Itaúna é mais complicado. Os dois ficam, na verdade, no mesmo lote, e são cortados por uma rua que foi aberta pelo município em 1971, mas nunca devidamente regularizada, chamada Lagoa Bonita. Atualmente, a via é considerada no cálculo do IPTU dos condomínios. Por ser um lote único, o imposto é um só, e precisa ser dividido por todos os moradores dos dois residenciais.

– Essa é a maior dor de cabeça atualmente. Todo mundo quer matrícula única e pagar IPTU independente. Para regularizar nossa situação, é preciso doar o terreno da rua à prefeitura, e para isso temos um processo administrativo correndo desde 2013. E ela precisa desmembrar o terreno em dois lotes, um para cada condomínio – explica Gilson Brasil, residente no Jardim Itaúna.

A alternativa popular

A mobilização pela regularização de condomínios não é a única luta nas Vargens no que se refere a habitação. No ano passado, após a prefeitura apresentar sua nova proposta para o Plano de Estruturação Urbana (PEU) e a Operação Urbano Consorciada (OUC) da área, um grupo de moradores se uniu em prol do que foi batizado como Plano Popular das Vargens. O objetivo não é apenas se opor ao projeto da prefeitura, mas também oferecer uma alternativa.

Na próxima audiência pública sobre o tema, o grupo pretende entregar o plano, que contou com a colaboração de 32 pessoas. As principais premissas são a luta contra remoções e contra o que classificam como privatização do bairro, a defesa do setor H (o entorno da Pedra Branca), a proteção dos campos molhados, o estímulo à participação popular e o debate sobre direitos das mulheres, segundo os integrantes, normalmente as mais afetadas pelas remoções. Laboratórios da UFRJ, da UFF e da Universidade Federal Rural participaram da concepção do projeto, orientando moradores principalmente a respeito de questões técnicas. Além do plano geral, está sendo elaborado um plano local para a comunidade de Taboinhas, que servirá como uma referência.

– A ideia é desenvolver um plano para cada microrregião das Vargens. Os próprios moradores devem participar e dizer ao poder público o que pode e deve ser feito ali – explica Silvia Baptista, 56 anos vividos em Vargem Grande.

Silvia fala com propriedade sobre a região onde sua família vive desde a chegada de seu avô, um dos fundadores da comunidade quilombola da Toca da Farinha, na Pedra Branca. Um dos assuntos ao qual ela mais dedicou tempo na elaboração do plano foi a agricultura familiar.

– Nos nossos estudos e fóruns, observamos que a agricultura é a salvação da floresta. Vargem Grande pode contribuir muito para a cidade com o debate e a prática da sustentabilidade; esse é um potencial que queremos explorar – diz Silvia, árdua defensora da participação popular. – O plano não é um fim em si mesmo. É uma ferramenta de luta.

A mobilização do grupo para a elaboração do plano incluiu quatro grandes encontros de moradores e oficinas em comunidades da região. A professora Mariana Bruce lembra que a causa é antiga:

– O que fizemos foi atualizar as demandas a partir da conjuntura; a luta por habitação nas Vargens é histórica. Queríamos não só nos posicionar contra o novo PEU, como propor uma alternativa. A privatização do nosso território é um absurdo, não queremos perder a soberania de decisão sobre a nossa área e deixar que a Odebrecht (construtora que elaborou o projeto da OUC) determine o que deve ser feito.

A artesã Giovana Berti diz que, segundo projeções apresentadas por uma professora da UFF em um dos encontros realizados pelo grupo, a área onde hoje é o Haras Pegasus, por exemplo, poderia passar a abrigar 15 mil pessoas, pelos parâmetros do novo PEU. A preocupação ambiental sempre foi uma das principais do grupo. Outra é a possível Operação Urbana Consorciada.

– Estão querendo um adensamento incompatível com a região – diz Giovanna, que defende a separação do PEU e da OUC. – São duas coisas distintas, que não podem estar no mesmo projeto de lei.

Fonte: O Globo-Barra 04/05/2017