Desafios pós-olímpicos

O Globo, Rio 451 anos, 01/mar

Durante seis anos, o Rio que os cariocas viam no futuro era o dos Jogos, que serão realizados em agosto. Às vésperas do início do evento, é hora de pensar adiante. Novos e velhos desafios se apresentam aos moradores que acompanharam a cidade ser transformada num grande canteiro de obras. A Zona Portuária recebeu novos ares, o setor de transportes ganhou investimentos, equipamentos foram construídos para as Olimpíadas. A Baía de Guanabara, no entanto, continua sendo o calcanhar de aquiles do nosso desenvolvimento. Passada a euforia olímpica, o que fazer para manter a autoestima carioca no mais alto lugar do pódio?

Para o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio Magalhães, o Rio deve se adequar a um conceito de cidade que ganha força entre as gerações mais novas: um lugar ambientalmente resolvido, onde as pessoas deixam de ser escravas do trânsito, com espaços públicos bem mantidos e, sobretudo, compacto. Para Magalhães, o Rio precisa interromper as políticas de expansão, como visto nas últimas décadas, sob o risco de perder o bonde da História.

– A nova geração quer uma cidade com espaços públicos qualificados, onde as pessoas possam caminhar com encantamento. Uma cidade que rejeita o isolamento, como o dos condomínios fechados e o dos edifícios que não dão bola para o espaço público. Esse sentimento que se consolida nas novas gerações corresponde ao desejo que se expressa para a cidade do século XXI. Como o Rio pode responder a isso? O Rio vai ter que parar com o seu modo de expandir a cidade. Vai ter que se contrair, aproveitar as áreas já consolidadas e fazer com que elas contem com boa estrutura urbana. A população do Rio está estável, e essa equação precisa ser compreendida pela sociedade – diz Magalhães.

Áreas hoje degradadas, como a Avenida Brasil e bairros no entorno da Baía de Guanabara, são vistas como lugares do futuro pelo arquiteto, desde que tenham políticas de recuperação.

– É preciso compreender essa necessidade de reversão do movimento urbanístico. No mundo de hoje, o que se quer é uma cidade confortável, disponível simultaneamente para se viver, trabalhar, se divertir, andar de bicicleta. Onde a pessoa, para comprar pão, não precise pegar o carro. A cidade onde mora apenas uma classe social não encanta mais – acrescenta ele.

METAS PARA O DESENVOLVIMENTO

A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) elabora um mapa do desenvolvimento com um olhar para daqui a dez anos. Em relação ao município do Rio, foram estabelecidos seis desafios. O primeiro deles é a criação, preservação e adequação das áreas industriais e empresariais. Economista da Firjan, Riley Rodrigues diz que é preciso levar vetores de desenvolvimento e crescimento para áreas hoje com poucos investimentos e baixa geração de empregos, como a Avenida Brasil, que já foi a principal zona industrial do país. Espaços ociosos poderiam receber infraestrutura ou passar por retrofit.

O trabalho da Firjan, que ainda será lançado, também trata de ordenamento habitacional.

– A Avenida Brasil, por exemplo, tem potencial enorme para bairros planejados, que ficariam próximos da universidade, do Centro, do aeroporto. É uma área nobre, onde o desenvolvimento industrial e o habitacional podem ocorrer de maneira integrada. Hoje é preciso pensar no adensamento inteligente da cidade. Não podemos mais ter uma Cidade Nova, bairro onde há empregos, mas faltam moradores. Trabalhadores chegam lá de ônibus, trem e metrô, havendo uma saturação do sistema de transporte. O grande problema dos congestionamentos não é o carro, mas, sim, a moradia distante do trabalho – analisa Riley.

Segundo ele, a requalificação de áreas não requer necessariamente dinheiro público: podem ser utilizados modelos de operação consorciada, como na Zona Portuária, de parcerias público-privadas (PPPs) e de captação de recursos para o financiamento de desenvolvimento urbano, por meio do Certificado de Potencial Adicional de Construção (Cepac).

Os outros desafios trabalhados pela federação são disponibilidade de energia (que inclui o estímulo a fontes alternativas, como a maremotriz, proveniente das marés e estudada pela Coppe); logística e mobilidade urbana, em que o sistema integrado de transportes é visto como um dos eixos principais de desenvolvimento; educação e qualificação de mão de obra; e saneamento ambiental.

– Esse mapa é uma bússola para orientar as ações do setor privado e as que necessitam de planejamento do setor político – explica Riley.

E o tema planejamento é apontado por Alberto Chebabo, médico infectologista da UFRJ e presidente da Sociedade de Infectologia do Rio de Janeiro, como uma das questões centrais a ser resolvida nos próximos anos. Ele lembra que, apesar das promessas olímpicas e do foco da mídia internacional na Baía de Guanabara, o que vimos foi uma perda de oportunidade para solucionar a poluição, entrelaçada com a falta de saneamento básico. Ou seja, o velho desafio da despoluição se mantém para além dos Jogos.

– Entre nós, da área da saúde, havia uma grande esperança. Para despoluir a baía, você tem tratamento de esgoto adequado e melhora na coleta de lixo. Tudo isso faz com que haja uma redução de males transmissíveis pelo esgoto, entre eles a hepatite A e doenças diarreicas – explica o médico, citando outro problema que seria atacado. – Com a melhora das condições sanitárias, você intensifica a coleta de lixo, o que teria impacto secundário na proliferação do Aedes aegypti e de doenças vinculadas ao mosquito. Quando se fala em saneamento básico, envolvem-se várias frentes na área da saúde.

INVESTIMENTO EM SANEAMENTO

Mesmo com essas questões ainda na mesa do poder público, Chebabo vê um avanço:

– O legado é que a população começa a entender o quanto saneamento básico é importante. Havia uma preocupação dos governos com a água: se ela estaria potável, se teríamos condições de balneabilidade nas raias olímpicas. Mas aí vem um mosquito, com que ninguém contava, mostrando que hoje não há um controle das condições de saneamento e de habitação. Então, também fica como legado a necessidade de se investir nisso.

O biólogo Mário Moscatelli, que há 20 anos estuda a Baía de Guanabara, diz que a sociedade deve sinalizar para a classe política que deseja ver suas águas limpas. Em agosto, elas receberão as competições de vela, com os maiores atletas mundiais do esporte.

– Se muito, teremos para os Jogos a Marina da Glória limpa, o que representa muito menos que 1% da baía. Em relação à Baía de Guanabara como um todo, precisamos continuar lutando – afirma. – O que sobra de agora em diante é a briga para se cumprir o básico: não jogar esgoto sem tratamento nos cursos d’água.

Para a historiadora e pesquisadora musical Rosa Maria Araújo, presidente do Museu da Imagem e do Som (MIS), “a cidade está mais bonita do que nunca” e, no que diz respeito à preparação para os Jogos, fez seu dever de casa, “apesar das trapalhadas desse mosquito esquisito”.

– Roma não se fez num dia – frisa. – Nosso desafio agora é manter a beleza, garantindo os serviços urbanos, o transporte, a limpeza. Para o legado olímpico não naufragar, é preciso valorizar os jovens, garantir escola e cultura, e fazer com que eles sintam que todos nós somos os donos da cidade. Somos os responsáveis por esse patrimônio que todos admiram.

Fonte: O Globo – 01/03/2016