Tudo aconteceu mais ou menos de uma hora pra outra. De repente, abriram na Conde de Irajá alguns dos melhores restaurantes do Rio, uma casinha colorida ao lado da outra. Foi só o começo. Depois veio a livraria de estantes cheias, os hostels dos gringos diferentes, a delicatessen sofisticada e o centro cultural com algumas das mais concorridas mostras de arte da cidade. A isso tudo se juntou o barzinho que todo mundo quer ir, a reabilitação dos cinemas de rua, a valorização dos teatros, o boteco aberto 24 horas e a descoberta de lugares bacanas para shows, exposições, ateliês, brechós e o escambau. E por aí foi. Tudo sem perder a vocação de subúrbio da Zona Sul, com seus meninos soltando pipa, o apontador de jogo do bicho na esquina, as padarias servindo média com pão e manteiga, os botequins com garçons de gravata, o vizinho organizando a coleta do lixo, os barbeiros “pela-gato”, as casas de vila, as amendoeiras, as oficinas mecânicas, os sapateiros, os armarinhos e o “homem do pão” na bicicleta. Botafogo – ou BotaSoHo, como já anda sendo chamado por aí – é bairro pra todo mundo. E, no caso, isso nem é força de expressão.

Fazendo as contas rapidinho de cabeça, dá pra chutar que uma parte significativa da culinária do planeta está representada nas mesas dos restaurantes do bairro. Tem cozinha italiana, espanhola, japonesa, chinesa, portuguesa, argentina, árabe, judaica, tailandesa, indiana, peruana, francesa, americana, mexicana e australiana. Mais que uma simples variedade de atlas gastronômico, a diversidade mostra que há muita gente – empresários, chefs de cozinha e, fundamentalmente, clientes – olhando diferente para o lugar e ajudando a enterrar de vez a ideia de “bairro de passagem” que sempre acompanhou Botafogo. Uma gente que passou, viu, parou, gostou e ficou.

– Quando eu e meus sócios abrimos o Miam Miam, estávamos apreensivos, porque há dez anos o bairro tinha pouquíssimas atrações, não sabíamos se as pessoas se deslocariam até aqui – conta a chef Roberta Ciasca, que instalou o primeiro restaurante numa casa da família e depois abriu o Oui Oui na Conde de Irajá e o Mira na Casa Daros, sempre em Botafogo. – Eu poderia abrir mais três restaurantes aqui, cada canto do bairro é de um jeito, tem de tudo. Trabalho, passeio com minha filha e resolvo minha vida toda aqui. Tenho marcado até reunião na Livraria da Travessa, que está linda. E, apesar de terem subido nos últimos tempos, os preços ainda são viáveis.

IMÓVEIS VALORIZADOS

É certo que o valor de compra e aluguel de imóveis, supervalorizados pelos eventos da Copa e das Olimpíadas, subiu em toda a cidade, mas ali o mercado anda ainda mais aquecido. Nos últimos 12 meses, os preços no bairro subiram cerca de 20%. Um apartamento de quarto e sala que em 2012 era vendido a R$ 400 mil, hoje não sai por menos de R$ 500 mil. Nos quarteirões que se espremem entre a Arnaldo Quintela e a Álvaro Ramos, desvalorizados há até pouco tempo, surge um lançamento imobiliário a cada quatro meses. O trecho, que vê suas antigas oficinas virando bares, brechós e produtoras de cinema, já é apontado como o Palermo – bairro dos alternativos de Buenos Aires – carioca. O comércio de rua, os muitos shoppings, os novos supermercados, as opções de lazer e a proximidade com o Centro e com as praias ajudam a explicar o que está acontecendo. Até o trânsito pesado – uma das marcas registradas e que se espalhou por toda a cidade – agora joga a favor.

Diretor de Marketing da imobiliária Julio Bogoricin, Márcio Pegado explica:

– Tem muita gente se mudando da Barra para Botafogo para escapar do trânsito. E muitos casais jovens também estão preferindo morar lá.

É olhando para essa gente novinha que Marcela Ceribelli investe na Sala de Estar multimarcas instalada dentro da Comuna, centro efervescente da cultura hipster. A cada madrugada o povo enche o espaço e lota o trecho da Rua Sorocaba, espalhando a rapaziada até o tradicional Alfa, boteco sem frescura na esquina com a Mena Barreto. De quebra, o sucesso da Comuna abriu espaços para eventos que seguem a mesma linha, como o Cluster, que acontece um domingo por mês no Solar das Palmeiras. Festa, show e moda – em muitos sentidos.

– A gente trabalha com um público específico, uma moda autoral. Não nos interessa estar num shopping, é bom estar perto da rua e de onde as coisas acontecem. Nos dá identidade – explica Marcela, que a cada dia descobre outras atrações no bairro. – Eu adoro ir à Casa Daros e jantar no Irajá. Às vezes é como estar em partes boas de Nova York.

Foi em Nova York que Márcio Barros, 33 anos, se inspirou para montar seu Caverna, bar que está botando gente pelo ladrão na antes sossegada Assis Bueno, nos costados do Cemitério São João Batista. No último ano, Márcio largou seu trabalho de publicitário e, junto com dois sócios, perambulou pela noite de Manhattan até achar o estilo certo. Na volta, ocupou a antiga oficina mecânica do pai – que se mantém no ofício, em outro imóvel no bairro – e montou seu negócio. Uma casa de fachada preta, luz indireta e um banco comprido na calçada.

– A gente sabe que a essência de um bar é o que ele serve, as comidas e as bebidas. Mas não dá para descuidar do visual. Em Botafogo a tendência é surgir cada vez mais esse tipo de opção, tem muita gente recém-chegada ao bairro atrás de novidade – diz Márcio, nascido e criado na região.

Diversão, para Carol Lima, vocalista da banda Fuzzcas, tem nomes e endereços certos: Audio Rebel e Solar de Botafogo. As duas casas costumam abrir suas portas para shows de gente nova do circuito. Carol, que até dois anos atrás morava em Vila Isabel e agora pode ser vista circulando com o marido, Pedro Dias, em torno da Cobal do Humaitá, diz que o bairro é um resumo do espírito do carioca.

– Aqui tem uma tranquilidade que eu buscava. E é muito bom poder sair para fazer um show e voltar andando pra casa – afirma a cantora, que elege a Cake & Co., na Conde de Irajá, um de seus endereços preferidos. – Botafogo tem um pé no subúrbio e outro no que tem de mais moderno, uma mistura muito legal.

O escritor Paulo Scott vai na mesma levada. Ele é gaúcho e, logo que chegou para viver no Rio, escolheu um ponto na fronteira entre Botafogo e Humaitá para morar. Paulo – autor de “Habitante irreal”, prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, em 2012 – diz que o clima do bairro favorece sua literatura, mais urbana. Na hora em que deixa a escrita de lado, ele gosta de se enfiar nos bares e restaurantes da redondeza. Ou então vai a exposições no Museu do Índio, para os cursos do Centro Cultural Baukurs ou pesca filmes raros na Cavídeo, locadora que sobrevive dentro da Cobal.

– Gosto da distância que o bairro guarda dos cartões-postais da Zona Sul, sonho incontrolável de todo turista. Eu prefiro não me deixar contaminar pelo arejamento que a praia naturalmente traz à alma – diz o escritor.

Paulo, que acabou de lançar o livro de poesias “Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo”, pela Companhia das Letras, acrescenta:

– Eu gosto de sair andando, parar no Palhinha, no Boteco Salvação ou comer uma picanha no Caravela do Visconde, o melhor custo/benefício do bairro. Mas o que eu mais gosto é da postura comedida das pessoas, raramente você encontra alguém pagando de esnobe, é um bairro “na dele”, que não aparece demais, e eu acho isso bom. É um lugar com personalidade.

A personalidade de Botafogo pode ser sentida na mistura que junta os artistas plásticos que abrem as portas de seus ateliês para o público, as velhinhas que vão ao mercado com carrinho de feira, a fila na porta de alguns dos últimos cinemas de rua da cidade, as mesinhas espalhadas no Baixo BB, a turma que emenda o último chope com o café da manhã no Cabidinho, os ajudantes de cozinha que jogam conversa fora nas calçadas da Conde de Irajá, as flores amarelas das acácias que florescem a partir de outubro, as casas coloridas da Professor Alfredo Gomes e da Visconde de Caravelas, as plaquinhas cheias de gentileza espalhadas pelas árvores da Paulo Barreto, as flores e a frutas nas bancas da Cobal, os desgarrados da Casa da Matriz, as rodas de samba da Praça Mauro Duarte, os músicos de rua que tocam na Praça Nelson Mandela e as pessoas, como o francês Damien Montecer, que ajudam a desenhar um novo perfil para o bairro.

– O que eu vejo aqui é um lugar bucólico, histórico, onde as pessoas se cumprimentam e se respeitam nas ruas – diz o chef, que mora em Santa Teresa e que acaba de inaugurar o La Villa, na Álvaro Ramos. – Mais que tudo, vejo pessoas dispostas a revitalizar um bairro que andava esquecido. É uma gente nova que aposta no futuro.

Agora, é Botafogo que pede passagem.

 

Fonte: O Globo, Revista O Globo – 21/09/2014