A transformação é complexa, mas obrigatória. Nas próximas décadas, ao que tudo indica, o Rio e todos os centros urbanos do planeta serão obrigados a conviver com consequências inevitáveis das mudanças climáticas, como temperaturas extremas, chuvas cada vez mais torrenciais e grandes inundações. Se eventos antes excepcionais se tornarem de fato corriqueiros, as cidades despreparadas correrão o risco de entrar em colapso.

Imagine enchentes constantes inundando estações de metrô e hospitais, bairros superpovoados por realocações mal planejadas e um sol mais agressivo a cada verão. Como a maior parte da atual infraestrutura não foi originalmente pensada para suportar este impacto, a palavra do momento é adaptação. Não há tempo a perder: ou as cidades reinventam seu desenho urbano ou os prejuízos serão ainda maiores.

– Diversos estudos mostram que o custo será menor se as cidades anteciparem as mudanças que virão nas próximas décadas, em vez de esperarem por elas – lembra o climatologista Carlos Nobre, secretário do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU.

Cada cidade pede uma estratégia diferente, por isso a necessidade de se mapear as diferentes vulnerabilidades. No caso do Rio, um aumento do nível do mar, por exemplo, significaria a realocação de pelo menos 500 mil pessoas. Mesmo que a elevação demore algumas décadas para acontecer, um trabalho de adaptação nos sistemas de diques e na mudança das ocupações próximas ao oceano não é nada trivial. A cidade conta hoje com 13 mil famílias em áreas de risco – segundo cálculo da prefeitura – e este número só deve aumentar no futuro. Em 50 ou 100 anos, a água deverá engolir diversas áreas ocupadas, mudando completamente a paisagem da cidade. Já em capitais como São Paulo, porém, as alterações climáticas já podem ser observadas neste momento, com o aumento do volume e da frequência da chuvas sendo provocados pela intensa urbanização.

– São Paulo é um caso pedagógico – opina Nobre. – Décadas atrás, a cidade não tinha pensado sua infraestrutura para fenômenos de chuvas mais intensas, e os alagamentos não param de crescer. Nos últimos anos, São Paulo trabalhou com medidas imediatas e emergenciais, e agora entendeu que é preciso uma alteração profunda na infraestrutura. É muito complexo pensar uma cidade de forma diferente, não apenas do ponto de vista de saneamento, mas também da mobilidade.

Para Alisson Barbieri, professor adjunto do Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais, as políticas de adaptação são incipientes no Brasil, e não mobilizam a sociedade como deveriam.

– Na academia, existem algumas iniciativas como o mapeamento de vulnerabilidade às mudanças climáticas. Rio e São Paulo já mostram algum movimento, mas não se veem medidas concretas e estratégias abrangentes incorporadas nos planos diretores das cidades para as próximas décadas.

Segundo Barbieri, a cultura brasileira continua sendo a de concretagem do leito dos rios, o que vai na contramão das mudanças previstas. A constante impermeabilização do solo também aumenta a possibilidade de inundações, e intensifica as ondas de calor. Mas a reordenação, lembra o demógrafo, não deve ficar restrita a questões tecnológicas:

– Daqui a 40 anos, a população brasileira tende a ter um melhor nível de renda, ocupando o espaço de forma mais intensa, com maior consumo de água e eletricidade. É preciso medir este impacto. Também teremos uma população mais envelhecida, mais vulnerável ao calor.

As principais cidades do mundo já fazem investimentos pesados para adaptar suas estruturas. No ano passado, Nova York lançou um plano de US$ 19,5 bilhões para se proteger dos eventos extremos, que inclui a construção de paredes removíveis contra as inundações e de casas e hospitais à prova d’água, além do fortalecimento de diques e uma reforma do sistema de esgotos.

Segundo o assessor especial do gabinete do prefeito do Rio de Janeiro e gerente do Programa de Desenvolvimento Sustentável, Rodrigo Rosa, a capital fluminense é a primeira cidade brasileira a ter desenvolvido um plano concreto de resiliência. Entre as recentes iniciativas, ele cita o projeto de obras para o controle das enchentes na região da Grande Tijuca, que já inaugurou o piscinão da Praça da Bandeira, e um novo sistema de drenagem para conter a elevação do nível do mar na zona portuária. O investimento na contenção de encostas subiu de US$ 41,1 milhões em 2001-2008 para US$190,65 milhões em 2009-2013, mas Rosa admite que não é fácil implantar uma política de prevenção no Brasil.

– A cultura brasileira ainda é reativa, acha que o país é abençoado por Deus, não tem eventos naturais de grande proporção. Com isso, acaba criando uma cultura de falta de preparação – diz o assessor.

Arquitetura contra o calor

 Ao longo do século 20, não apenas o meio ambiente foi maltratado. Vítima da falta de planejamento e da urbanização violenta, as cidades também sofreram com a ocupação de encostas, a falta de espaços públicos sombreados e de vegetação urbana, entre outras agressões. Agora, elas passarão pelo mais duro teste com o aumento de fenômenos extremos.

– Assim como já estamos focados na questão do verde, também deveríamos pensar num ambientalismo cinza, voltado para os centros urbanos – avalia Valter Caldana, arquiteto e urbanista, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. – A cidade precisa ser considerada um ecossistema à parte. E quanto mais o maltratamos, mais ele nos maltrata. Tanto que já está entrando em colapso no mundo inteiro.

Segundo Caldana, a solução não passa apenas por adaptações radicais. Estudos indicam que intervenções urbanas pontuais podem fazer diferença. Um controle da insolação, que privilegie calçadas em zonas de sombra, e uma maior arborização das cidades são armas simples e eficientes para proteger a população do aumento das temperaturas.

– Algumas medidas são sistêmicas – diz Caldana. – A vegetação cria um microclima fundamental para amenizar o calor. Não se pode sair cortando árvore de norte a sul do país como se faz hoje. O verde hoje perdeu a competição para os fios de energia, que mais do que nunca precisam ser enterrados. Nas regiões periféricas de Rio e São Paulo, há bairros sem uma única árvore.

Outra alternativa é recuperar algumas técnicas da arquitetura moderna brasileira, que décadas atrás já sabia tirar partido do clima natural. Assim, seria possível economizar a energia gasta em climatizações artificiais.

– Hoje se assiste a uma reprodução contínua e acrítica das mesmas soluções tipológicas de arquitetura. Parece carimbo. É o império de uma mesma lógica, um mesmo padrão, com condomínio fechado impermeabilizado e espaços coletivos transformados em salas de ginástica – lamenta Eunice Helena Abascal, professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Especialista em história da arquitetura, Eunice defende uma relação mais cuidadosa entre o ambiente construído e as áreas livres. Entre as soluções sustentáveis criadas pelos arquitetos modernos estavam o quebra-sol, utilizado na fachada do edifício para impedir os efeitos da insolação no seu interior, e a ventilação cruzada (janelas e portas colocados em paredes opostas, no sentido dos ventos locais, permitindo a entrada e a saída do ar). Mas o equilíbrio entre a rentabilidade de uma obra e a busca de soluções sustentáveis também depende de uma escolha de materiais adequados à nossa realidade climática.

– Não é condenar o concreto a priori, mas pensar em soluções arquitetônicas mais articuladas e na especificação dos materiais, que podem ser tijolos ou cerâmicas.

Na guerra contra as ilhas de calor, a eficiência dos telhados verdes não é unanimidade entre especialistas. Uma tese de doutorado do geógrafo Humberto Catuzzo, da Universidade de São Paulo, contudo, comparou dois edifícios na região central da capital paulista: o Conde Matarazzo, com telhado verde; e o Mercantil/Finasa, com cobertura somente de concreto. De acordo com a pesquisa, o ar acima do telhado com a cobertura vegetal chegou a ficar 5º C mais frio e a umidade relativa do ar 16% maior. Outra vantagem do telhado verde, segundo o geógrafo, é o seu papel na contenção das enchentes.

– As áreas vegetadas retêm por mais tempo a água da chuva, retardando o escoamento para as galerias de água pluvial, pois a água da chuva penetra no solo da cobertura por meio da vegetação (a qual também faz uso da água), diferentemente do telhado de concreto em que a água cai e escoa instantaneamente para os coletores de água pluvial – explica Catuzzo.

Fonte: O Globo Online – 25/02/2014