A casa própria é o ativo físico mais fundamental na acumulação de capital das famílias. O papel de reserva de valor permite, por exemplo, transferir poder de compra para a velhice. Além disso, a casa própria presta serviços de moradia, um dos mais essenciais.

Avaliamos estas duas facetas da casa própria. Medimos o estoque de capital residencial e sua distribuição; e depois como as pessoas de diferentes estratos valoram subjetivamente a sua moradia e como ela impacta sua satisfação com a vida. Endereçamos estes pontos a partir da Pnad e da POF do IBGE, do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) e pesquisa de campo nossa cobrindo lacunas dos dados.

O IRPF de 2010 indicava R$ 1,87 trilhão de capital imobiliário em propriedade das famílias. Esses valores incluem não só moradias e são medidos pelo valor histórico, não incorporando a valorização imobiliária ocorrida. Houve apreciação real de 43,7% só nos últimos 3 anos. A riqueza imobiliária equivale no IRPF a 41,8% do valor declarado do patrimônio das famílias, próximo dos 40,6% para os EUA, mas inferior ao de outros países como França e Austrália com 63% e 70%, respectivamente.

O desafio em curso é melhorar as vidas privadas, acelerando a oferta de infraestrutura pública.

Pesquisa de campo nossa com 3.800 entrevistas em 210 cidades representativas do Brasil revela um patrimônio imobiliário de R$ 4,17 trilhões. Cada imóvel custa 125 meses de aluguel, dado útil na sequência.

Uma terceira via precifica o capital residencial modelando o valor cobrado no mercado de aluguéis por meio da riqueza de dados da Pnad/IBGE sobre as características físicas das moradias (número de cômodos, quartos e banheiros; materiais do teto, parede e chão; acesso a serviços públicos, localização etc). Usamos a relação aluguel/valor do imóvel média de 125 meses citada acima para transformar fluxos de renda em estoques de riqueza. O exercício revela capital imobiliário de R$ 4,29 trilhões, valor próximo ao citado anteriormente. Cerca de R$ 20 mil por pessoa, ou cerca de R$ 80 mil para uma família de 4 pessoas.

Uma vantagem do terceiro método acima exposto é herdar as inúmeras possibilidades da Pnad. Na primeira dimensão notamos um avanço do capital residencial per capita de 42,1% desde 2003, sendo que desde 2009 o crescimento anual foi 169% maior que o ocorrido até 2009, quando o programa Minha Casa Minha Vida começou a ser implementado. Na determinação da iniquidade brasileira, a casa própria é um amortecedor das desigualdades de renda com coeficiente de concentração de 0,309 contra 0,566 da renda ambas em termos per capita.

Se na fotografia o efeito casa própria atenua desigualdades, no filme a valorização relativa da casa própria dos mais pobres fez com que as diferenças das condições de moradia entre pessoas caíssem bem mais neste período que as da própria renda. A queda da desigualdade do capital residencial foi 166% maior que a queda da desigualdade de renda da Pnad, alavancando seus impactos distributivos. A face humana da maior equidade do valor das moradias revela que este cresceu mais em grupos tradicionalmente excluídos como analfabetos, negros e empregados agrícolas com ganhos de 59%, 62% e 77%, respectivamente.

Meu saudoso Tio Bráz, dono de uma pequena firma de avaliação de imóveis, me dizia: duas “kitnets” rendem mais na aferição de aluguéis do que um imóvel maior pelo dobro do preço. De fato, o valor do imóvel dos 25% mais ricos equivale a 149 meses de aluguel contra 120 meses da média. Ou seja, a opção pela construção de habitações populares guarda mais equidade e também mais eficiência econômica. Neste sentido nossos cálculos pela relação média entre o aluguel e o valor do imóvel subestimam a redistribuição do capital residencial ocorrida no Brasil.

Avaliamos aspectos subjetivos por meio de pesquisas representativas com perguntas diretas às pessoas. O sonho da casa própria está ligado à felicidade do brasileiro. Numa escala de 0 a 10 a satisfação com a vida sobe de 6,6 de quem mora alugado para 6,8 de quem está comprando sua casa e 6,9 de quem já tem a moradia quitada. A mudança de felicidade, independentemente da forma de financiamento, é ainda maior segundo as condições de moradia da família caindo de 7 para quem reside numa moradia boa para 6,7 em morada apenas satisfatória e 5,5 para moradia considerada ruim. Exercício de seleção de variáveis sequencial confirma a importância máxima assumida pelo valor de aluguel atribuído na explicação da qualidade percebida do domicílio.

Em 2003, 15,1% dos brasileiros habitavam moradias ruins caindo para 10,6% em 2009 e chegando a 6,9% em 2013. Esta parcela cai também ao longo da distribuição de renda de 9,3% no quarto mais pobre a 2,3% entre o quarto mais rico. Já a percepção de qualidade ruim para a moradia do brasileiro em geral é na média 49%, avaliação bem pior que a média das notas de moradias individuais. Cada um avalia sua moradia melhor que a média dos outros 200 milhões de brasileiros. Ou seja, minha casa é quase sempre melhor que o barraco do meu vizinho.

Além da casa própria há bens duráveis e veículos. A compra destes corresponde respectivamente a 58,1% e 186,7% da renda de um adulto nos últimos três anos. O acesso ao combo de duráveis (televisão em cores, fogão várias bocas, geladeira, rádio, telefone (fixo ou celular) e máquina de lavar) passa de 28,5% em 2003 a 46,6% em 2012, enquanto o conjunto básico de serviços públicos (eletricidade, coleta de lixo, esgotamento sanitário e água) sobe menos, de 51,9% a 59,2%, neste ínterim. A provisão de melhores serviços e a regularização fundiária urbana guardam a promessa de valorizar mais o capital residencial.

O valor das casas e a vida nelas melhoraram muito, ainda mais entre os mais pobres, assim como a vida profissional, com mais empregos formais e salários. Agora entre as portas de casa e do trabalho, ou das respectivas garagens, o tempo de trajeto aumentou. O desafio em curso é melhorar as vidas privadas, fazendo valer mais os impostos pagos, acelerando por meio de concessões e parcerias público-privadas (PPPs) a oferta de infraestrutura pública.

Marcelo Côrtes Neri é ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e professor da EPGE/FGV.

 

Fonte: Valor Econômico, Opinião, Marcelo Côrtes Neri – 02/07/2014